Brasília nasceu no signo da arte.
Brasília nasceu no signo da arte.
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14 de Outubro de 2024
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14 de Outubro de 2024
“Já se disse que é obra de loucos." — Lucio Costa
Nas primeiras décadas do século XX, lançaram-se as bases para um projeto de modernização nacional que definiu, como um dos eixos fundamentais, a cultura. Nos círculos intelectuais, nos quais se debatiam problemas de estética, da inserção da arte moderna na vida e da função social da arquitetura, falava-se sobre forma, imaginava-se criar cidades totalmente planejadas e, como disse Mário Pedrosa, ensaiavam-se utopias. Evento catalisador de diferentes manifestações artísticas, a Semana de 22 foi posteriormente reconhecida por Mário de Andrade como marco da modernidade cultural, de um novo modo de pensar e agir, pautado pelo (...) direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”.(ANDRADE, 1942. P. 5). Décadas depois, nos anos 50, firmou-se, o Brasil, como vetor cultural da modernidade global, ao passo que se garantiu, politicamente, via movimentos antirreacionários, a conjuntura para o desenvolvimento nacional desde o centro do país.
O projeto de deslocamento da sede do poder administrativo federal para o Planalto Central sintonizava com o espírito de modernização agitado nas décadas precedentes. E quando a urgência de se desenhar a nova capital federal priorizou defini-la dentro de um programa cultural mais amplo, surgiu o Plano Piloto de Brasília, criado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa, figura chave para a realização de uma agenda de integração da arquitetura, do urbanismo e da arte no novo Brasil dos anos 50. Para a crítica de arte Marie-Odile Briot (1988), a escolha do projeto de Lucio Costa significou a realização do “projeto em canteiro”, isto é, a persistência da modernidade como horizonte da cultura nacional. (BRIOT, 1988, p. 43).
E do reconhecimento desses atributos pelas principais figuras políticas do Estado, derivaram iniciativas precoces a garantir a manutenção e a preservação do ethos da capital federal, isto é, seu urbanismo, arquitetura e arte.
Lucio Costa avança no desenvolvimento inicial de seu Plano Piloto para Brasília com apoio de dezenas de profissionais – artistas, urbanistas, paisagistas, arquitetos, que colaboram durante décadas para tornar fato consumado a construção de uma cidade pautada pelos princípios urbanísticos da Carta de Atenas, mas que não se reduziria à mera aplicação do funcionalismo de raiz. (COSTA, 2018, p. 29). O texto de apresentação de sua proposta arquitetônica tece em modo poético – algo grego, algo renascentista – associações do ético e do estético e, da atitude digna e nobre do urbanista, decorre a ordenação, o senso de conveniência, a medida do caráter monumental de uma cidade moderna cuja forma deve expressar o valor transcendental de seus símbolos republicanos, não meramente uma cidade com monumentos.
O caráter monumental estava na gênese formal do projeto urbanístico, presumia que arquitetura é arte e que a cidade não pode prescindir da segunda. Tais considerações, fluentes no discurso de Costa, faziam parte de uma conjuntura muito especial do país, quando a reflexão sobre a estética estava em pauta nos círculos especializados, a exemplo do Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte, realizado em Brasília em 1959, um ano antes de sua inauguração. A presença precoce dos grandes críticos da cultura mundial abriu o debate a respeito do tema da “Cidade nova – síntese das artes” sobre o solo da futura sede da capital federal do Brasil. Brasília nascia legitimada como obra de arte (PEDROSA, 1959, p. 7) .
Desde os primeiros desenvolvimentos do Plano Piloto de Brasília, durante a construção e décadas após sua inauguração, a participação do arquiteto Oscar Niemeyer garantiu a manutenção de premissas estéticas de escala, ocupação e articulação unidade x todo, aspectos originais da cidade moderna de Lucio Costa. Especialmente quanto à zona cívica – Esplanada dos Ministérios e Praça dos Três Poderes –, Niemeyer manteve controle da unidade do sistema plástico em suas proposições arquitetônicas, quanto à implantação, à volumetria das edificações, à sintaxe de seus elementos primordiais – pilares, lajes, marquises, fachadas. Sua capacidade inventiva esteve orientada a repetições, inversões e alternâncias de um repertório de assimetrias, ritmos, monocromia, de tal modo resultando a leitura de cada obra como parte do jogo compositivo, nunca o edifício isolado, utilizando como elemento imprescindível desse jogo o plano do chão pavimentado ou a lâmina d’água, perspectivas, transparências, entrecolúnios e o vazio – entre dois ou mais edifícios, entre os edifícios e as obras de arte a eles justapostas.
Distanciado criticamente de sua obra mais importante, Oscar Niemeyer revisou seu trabalho em Brasília, definindo-o como uma nova fase, menos inventiva e mais purista. De fato, o impulso inventivo em cada projeto fora preterido por algo mais próximo do espírito de sistema e, frente à grande quantidade de projetos que criava no curtíssimo prazo de três anos até a inauguração da cidade, desenhou tipologias e situações inusitadas, dificílimas para a engenharia civil da época. O talento incomum de Niemeyer, seu senso de conveniência da forma e de escalas, na implantação dos edifícios, na plasticidade proposta, evidenciam o notável senso de conjunto de quem não se permitia inaugurar um novo repertório a cada palácio, igreja, espaço que projetava. Ao contrário, Niemeyer desenvolveu arquiteturas que se diferenciam pela reorganização dos elementos de sua base formal, repertório próprio de quem, ao mesmo tempo, articula o domínio de uma lógica serial de compor e uma ampliada capacidade inventiva.
No sentido de promover a realização da síntese das artes, Niemeyer se mobilizou politicamente, buscando garantir a colaboração dos artistas modernos na feitura da arquitetura da cidade, e de situar a obra de arte como elemento constitutivo dessa, não como mero adereço. O Palácio do Itamaraty é o caso que talvez melhor exemplifique isso, nem tanto por reunir, em quantidade e qualidade, o grande e importante acervo de obras de arte, mas pela riqueza de elementos e espaços artísticos/arquitetônicos integrados, a começar pela escadaria projetada pelo arquiteto Milton Ramos e calculada pelo engenheiro Joaquim Cardozo. Mas também os terraços, salões, jardins internos, fachadas são conformados segundo um jogo de inversões, como os jardins dentro do edifício, projetados sobre o pavimento mais elevado, ou bloco que parece flutuar sobre a água, a estrutura de concreto que adquire o efeito de extrema leveza em razão das finas ranhuras das fôrmas de madeira ripada usadas no processo de concretagem.
Convidado a colaborar no projeto do Palácio do Itamaraty, o artista italiano Bruno Giorgi aprofunda o jogo arquitetônico das contradições e cria o Meteoro (1967), escultura de mármore de Carrara instalada à frente da fachada voltada para a avenida S-1, de acesso à Praça dos Três Poderes. Valendo-se do artifício do lago que rodeia o edifício, Giorgi explora o efeito do jogo de espelhos e a base formal da arquitetura do palácio, fazendo de sua escultura um estudo sobre a evolução da matemática de uma esfera perfeita em uma nova topologia, que evoca uma série de procedimentos de desenhos gerativos possivelmente traçados com o compasso. À simetria de repetição adotada por Niemeyer nas arcadas das fachadas do edifício, Giorgi alia a simetria radial, e à frente dos arcos das fachadas, rigorosamente alinhados e ritmados como sentinelas, dispõe a forma em revolução, livre dos eixos, provável alusão à energia cósmica dos meteoritos que giram em ciclos até cessarem sobre um ponto qualquer da Terra. Mas a escultura está posicionada onde está, pouca coisa deslocada do terceiro arco da fachada – da esquerda para a direita – e a memória de quem o contempla certamente não vai remeter a essa posição exata, mas a qualquer ponto sobre o plano do espelho d’água, à frente do palácio, não exatamente na metade da fachada voltada para a avenida, porque essa é a maneira do artista induzir à percepção de que a escultura como que se move, parece rolar sobre a água, mas, na verdade, pesa quarenta toneladas; aparenta uniformidade, mas é composta de partes; está fixada em um pedestal escondido pela água, mas parece flutuar.
Distanciado criticamente de sua obra mais importante, Oscar Niemeyer revisou seu trabalho em Brasília, definindo-o como uma nova fase, menos inventiva e mais purista. De fato, o impulso inventivo em cada projeto fora preterido por algo mais próximo do espírito de sistema e, frente à grande quantidade de projetos que criava no curtíssimo prazo de três anos até a inauguração da cidade, desenhou tipologias e situações inusitadas, dificílimas para a engenharia civil da época. O talento incomum de Niemeyer, seu senso de conveniência da forma e de escalas, na implantação dos edifícios, na plasticidade proposta, evidenciam o notável senso de conjunto de quem não se permitia inaugurar um novo repertório a cada palácio, igreja, espaço que projetava. Ao contrário, Niemeyer desenvolveu arquiteturas que se diferenciam pela reorganização dos elementos de sua base formal, repertório próprio de quem, ao mesmo tempo, articula o domínio de uma lógica serial de compor e uma ampliada capacidade inventiva.
No sentido de promover a realização da síntese das artes, Niemeyer se mobilizou politicamente, buscando garantir a colaboração dos artistas modernos na feitura da arquitetura da cidade, e de situar a obra de arte como elemento constitutivo dessa, não como mero adereço. O Palácio do Itamaraty é o caso que talvez melhor exemplifique isso, nem tanto por reunir, em quantidade e qualidade, o grande e importante acervo de obras de arte, mas pela riqueza de elementos e espaços artísticos/arquitetônicos integrados, a começar pela escadaria projetada pelo arquiteto Milton Ramos e calculada pelo engenheiro Joaquim Cardozo. Mas também os terraços, salões, jardins internos, fachadas são conformados segundo um jogo de inversões, como os jardins dentro do edifício, projetados sobre o pavimento mais elevado, ou bloco que parece flutuar sobre a água, a estrutura de concreto que adquire o efeito de extrema leveza em razão das finas ranhuras das fôrmas de madeira ripada usadas no processo de concretagem.
Convidado a colaborar no projeto do Palácio do Itamaraty, o artista italiano Bruno Giorgi aprofunda o jogo arquitetônico das contradições e cria o Meteoro (1967), escultura de mármore de Carrara instalada à frente da fachada voltada para a avenida S-1, de acesso à Praça dos Três Poderes. Valendo-se do artifício do lago que rodeia o edifício, Giorgi explora o efeito do jogo de espelhos e a base formal da arquitetura do palácio, fazendo de sua escultura um estudo sobre a evolução da matemática de uma esfera perfeita em uma nova topologia, que evoca uma série de procedimentos de desenhos gerativos possivelmente traçados com o compasso. À simetria de repetição adotada por Niemeyer nas arcadas das fachadas do edifício, Giorgi alia a simetria radial, e à frente dos arcos das fachadas, rigorosamente alinhados e ritmados como sentinelas, dispõe a forma em revolução, livre dos eixos, provável alusão à energia cósmica dos meteoritos que giram em ciclos até cessarem sobre um ponto qualquer da Terra. Mas a escultura está posicionada onde está, pouca coisa deslocada do terceiro arco da fachada – da esquerda para a direita – e a memória de quem o contempla certamente não vai remeter a essa posição exata, mas a qualquer ponto sobre o plano do espelho d’água, à frente do palácio, não exatamente na metade da fachada voltada para a avenida, porque essa é a maneira do artista induzir à percepção de que a escultura como que se move, parece rolar sobre a água, mas, na verdade, pesa quarenta toneladas; aparenta uniformidade, mas é composta de partes; está fixada em um pedestal escondido pela água, mas parece flutuar.
Distanciado criticamente de sua obra mais importante, Oscar Niemeyer revisou seu trabalho em Brasília, definindo-o como uma nova fase, menos inventiva e mais purista. De fato, o impulso inventivo em cada projeto fora preterido por algo mais próximo do espírito de sistema e, frente à grande quantidade de projetos que criava no curtíssimo prazo de três anos até a inauguração da cidade, desenhou tipologias e situações inusitadas, dificílimas para a engenharia civil da época. O talento incomum de Niemeyer, seu senso de conveniência da forma e de escalas, na implantação dos edifícios, na plasticidade proposta, evidenciam o notável senso de conjunto de quem não se permitia inaugurar um novo repertório a cada palácio, igreja, espaço que projetava. Ao contrário, Niemeyer desenvolveu arquiteturas que se diferenciam pela reorganização dos elementos de sua base formal, repertório próprio de quem, ao mesmo tempo, articula o domínio de uma lógica serial de compor e uma ampliada capacidade inventiva.
No sentido de promover a realização da síntese das artes, Niemeyer se mobilizou politicamente, buscando garantir a colaboração dos artistas modernos na feitura da arquitetura da cidade, e de situar a obra de arte como elemento constitutivo dessa, não como mero adereço. O Palácio do Itamaraty é o caso que talvez melhor exemplifique isso, nem tanto por reunir, em quantidade e qualidade, o grande e importante acervo de obras de arte, mas pela riqueza de elementos e espaços artísticos/arquitetônicos integrados, a começar pela escadaria projetada pelo arquiteto Milton Ramos e calculada pelo engenheiro Joaquim Cardozo. Mas também os terraços, salões, jardins internos, fachadas são conformados segundo um jogo de inversões, como os jardins dentro do edifício, projetados sobre o pavimento mais elevado, ou bloco que parece flutuar sobre a água, a estrutura de concreto que adquire o efeito de extrema leveza em razão das finas ranhuras das fôrmas de madeira ripada usadas no processo de concretagem.
Convidado a colaborar no projeto do Palácio do Itamaraty, o artista italiano Bruno Giorgi aprofunda o jogo arquitetônico das contradições e cria o Meteoro (1967), escultura de mármore de Carrara instalada à frente da fachada voltada para a avenida S-1, de acesso à Praça dos Três Poderes. Valendo-se do artifício do lago que rodeia o edifício, Giorgi explora o efeito do jogo de espelhos e a base formal da arquitetura do palácio, fazendo de sua escultura um estudo sobre a evolução da matemática de uma esfera perfeita em uma nova topologia, que evoca uma série de procedimentos de desenhos gerativos possivelmente traçados com o compasso. À simetria de repetição adotada por Niemeyer nas arcadas das fachadas do edifício, Giorgi alia a simetria radial, e à frente dos arcos das fachadas, rigorosamente alinhados e ritmados como sentinelas, dispõe a forma em revolução, livre dos eixos, provável alusão à energia cósmica dos meteoritos que giram em ciclos até cessarem sobre um ponto qualquer da Terra. Mas a escultura está posicionada onde está, pouca coisa deslocada do terceiro arco da fachada – da esquerda para a direita – e a memória de quem o contempla certamente não vai remeter a essa posição exata, mas a qualquer ponto sobre o plano do espelho d’água, à frente do palácio, não exatamente na metade da fachada voltada para a avenida, porque essa é a maneira do artista induzir à percepção de que a escultura como que se move, parece rolar sobre a água, mas, na verdade, pesa quarenta toneladas; aparenta uniformidade, mas é composta de partes; está fixada em um pedestal escondido pela água, mas parece flutuar.
No “eixo simbólico” do Plano Piloto de Brasília, obras como essa são diariamente visitadas por turistas de diversas localidades do Brasil e do mundo e, por isso, funcionam como marcos dos edifícios. Contudo, mesmo tendo sido concebidas, construídas e instaladas depois da arquitetura, não podem ser consideradas obras a posteriori, pois são manifestações do mesmo espírito do tempo, sendo o espaço moderno que compartilham decorrência de uma conjuntura sobre o entendimento da finalidade estética da arte, da arquitetura e da cidade. Assim como na arquitetura moderna de Brasília, o aspecto ao qual essas obras menos alude é o autoral, pelo caráter da arte abstrata que chama a atenção do observador para a qualidade formal da técnica, dos materiais, da plasticidade – volume, vazio, escala, posição, distribuição da massa, textura e assim por diante. Por isso, de modo distinto da obra de arte naturalista, a obra de arte abstrata nos convida a captar o que não está figurado, nem delimitado, mas implícito, incompleto e ausente.
Além disso, a obra de arte moderna abstrata também constrói seu próprio espaço. Os Candangos, escultura de bronze de Bruno Giorgi, é exemplar dessa chave da escultura moderna. Um dos principais pontos turísticos de Brasília, tornou-se ícone da Praça dos Três Poderes, referência formal e simbólica do conjunto urbano. A escolha por posicionar a escultura no meio da praça, não ladeada a essa, fora antecipadamente riscada em croquis do próprio Oscar Niemeyer. A plasticidade da escultura agencia um modo específico de ocupação do espaço imediatamente ao seu redor. O efeito, assim como na escultura do meteoro, é de dissimular a percepção do peso do objeto, pois a forma alongada e afinada de seu perfil contrasta com a carga do gigante conjunto de bronze de nove metros de altura. Os pés das figuras, girados para fora em uma abertura coreográfica, tocam sutilmente a base de bronze, formando uma linha de pontos de apoio que acentua o aspecto quase bidimensional dessa obra.
De proporções tão esbeltas, as figuras dos candangos aparentam certa instabilidade, como se fossem tombar com o vento, e como é próprio da obra de arte abstrata, sua eloquência se constitui pelo que ela evoca no amplo entorno que sua dimensão e escala exigem para se contemplar as ausências que a qualificam como obra de arte. Não faltam à obra Candangos a parede de fundo, o nicho que serve de anteparo e/ou referência de escala à escultura, o pedestal, uma zona cromática pavimentada que indique sua ocupação, ou uma fachada/muro próximo, porque sua função bem esbelta e quase bidimensional, no local em que foi instalada e no modo como foi instalada, assemelha-se à função do estandarte, se imaginarmos que a homenagem da forma aos construtores de Brasília não tem frente nem verso. Suas possíveis representações estão latentes in loco para serem levadas adiante, desde a posição central em que está, entre os dois palácios, como símbolo romântico da força do trabalho de indivíduos que erguem uma cidade.
Se a esbelteza e a presença de vãos na massa fundida em bronze conferem aos Candangos certo efeito de transparência, é o aspecto de volume e de uniformidade que atribuem à obra do escultor italiano Alfredo Ceschiatti a qualidade de opacidade conveniente à paisagem que antecipa ou circunda os espaços onde estão instaladas suas esculturas – os Palácios dos Três Poderes da República, a Catedral. A Justiça e conjunto intitulado Os Evangelistas são nítidos exemplos disso.
A primeira, monólito esculpido em granito de rocha de Petrópolis, disposta à frente e à direita do palácio do Supremo Tribunal Federal, está voltada para o Palácio do Planalto, sede do governo executivo federal do Brasil. O objeto alude a uma grande figura de mulher, coroada com uma cabeça desproporcionalmente pequena, de silhueta bem delineada e volumetria uniformes, simétrica, vendada, com as mãos empunhando uma espada. Diferentemente de uma escultura naturalista, a figura é visivelmente derivada das formas euclidianas, sem dobras nem vãos senão aqueles entre os braços e o quadril, pouco se modificando seu aspecto sob as variações da luz natural. Ao circundar a escultura, capta-se o espírito de geometria, de onde se poderia imaginar que o escultor antecipava, ao trabalho sobre a pedra, diagramas de transformação do monólito em sólidos, depois, desenhos de contornos em alta resolução, proporções balanceadas dentro de um eixo vertical invisível que mantém firme e ereta a postura da Justiça. Sem portar balança, a escultura é a imagem do equilíbrio. A sutileza do monumento está no contorno arqueado do tronco da figura, que parece projetar a curvatura das colunas do palácio da Suprema Corte – o STF –, mas também na posição do pesado bloco opaco propositalmente deslocado à direita de quem se aproxima do edifício, marcando o início do percurso da escadaria que convida ao acesso frontal.
Enquanto no Palácio do STF a posição da Justiça é um referencial de marcação da periferia da arquitetura da edificação, no caso da Catedral de Brasília, Alfredo Ceschiatti empregou a escultura ainda mais arquitetonicamente, compondo com quatro grandes estátuas o eixo direcional do acesso à nave subterrânea da igreja, articulando o conjunto dos profetas a uma porção de paisagem bem mais ampliada do que as imediações da edificação.
Esculpido com a colaboração de Dante Croce, o conjunto intitulado Os Evangelistas é composto de quatro figuras que representam os profetas Lucas, Marcos e Mateus, do lado esquerdo; João, do lado direito. Dispostas em ala frontal à Catedral de Brasília, conformando um perímetro que se articula à rampa de acesso ao subterrâneo, as quatro estátuas de três metros de altura cada direcionam e delimitam a zona de uma escala intermediária sobre a grande praça da igreja projetada por Niemeyer. O artista esculpiu no bronze homens que portam nas mãos as primeiras escrituras sagradas do cristianismo, e em vez de posicioná-los de frente para a rua, os dispôs em modo alternado, não em face da igreja – que está ao sul –, mas, ora voltados ao centro cívico-administrativo – ministérios e Congresso Nacional, a leste –, ora voltados ao centro de diversões, a oeste. O espaço buscado pelo artista moderno vai além do entorno imediato do plano da fachada, da praça, da escadaria. É um espaço dinâmico, de projeção da relação de sua obra com a paisagem urbana, de expansão da experiência arquitetônica da cidade e das suas possíveis imagens.
A conquista da aguda intimidade da obra de arte com seu suporte arquitetônico não raro é também a intimidade do artista com o arquiteto, ao ponto de, propositadamente, confundirem-se obras/autores, para o bem comum de se erguer uma cidade nova. Dos mais atuantes expoentes da arte moderna brasileira em Brasília, professor, criador de uma linguagem nova das grandes superfícies que viria atualizar materiais e cores da tradição, Athos Bulcão participou do grupo de profissionais da primeira e da segunda geração que construiu a nova capital. Suas obras realizam a ideia da síntese das artes tão propagada pelos representantes do movimento moderno internacional e nacional, e seu legado para as gerações que o seguiram comprova o potencial imagético de suas criações.
Athos Bulcão sempre declarou que, dentre suas obras, uma delas havia alcançado um resultado muito além do esperado para um curtíssimo tempo de criação. Trata-se do projeto para as fachadas do Teatro Nacional de Brasília, solicitado por Oscar Niemeyer e, definitivamente, obra paradigmática da reflexão sobre o tema da integração das artes e da arquitetura. O edifício trapezoidal é alongado nas direções leste e oeste, às quais correspondem as fachadas envidraçadas entre as colunas inclinadas, construídas em concreto aparente; ao norte e ao sul, duas paredes gigantescas são o suporte de centenas de cubos brancos de tamanhos diferentes, criando um efeito de luz e sombra magnífico. A volumetria do teatro, uma pirâmide de cume abatido, nasce da cota inferior da praça do setor de diversões norte, e é uma bela solução de implantação quando se observam os diferentes acessos aos vários níveis de piso do teatro.
Ao artista, o arquiteto solicitou que o efeito de massa da volumetria parecesse leve, ao que Athos Bulcão respondeu, em apenas dez dias, com seu maior trabalho sobre grandes superfícies, o jogo de luz x sombra x figura, derivado de suas experiências como professor da disciplina Volume e Luz, ministrada na Universidade de Brasília. Guardadas as devidas proporções e diferenças, para o Teatro Nacional de Brasília, Athos criou efeito parecido com o das máscaras da Commedia dell’arte, caracterizadas por suas arestas multifacetadas que multiplicam o efeito de dinamismo das sombras e as variações de formas necessárias à dramaticidade teatral. Por causa da obra de arte sob luz e sombra, o artifício arquitetônico completa seu papel de projetar em grande escala a amplitude do teatro como peça fundamental da cidade e realiza outro modo de efetiva integração da arte e da arquitetura, diferente da relação da escultura justaposta à edificação e à praça, e que envolve a existência de um espaço de investigação compartilhado instituído com o projeto arquitetônico.
Cidade nova, síntese das artes
Esses são alguns dos exemplos do espírito colaborativo de artistas e arquitetos envolvidos na ideia de realizar suas criações como partes do sistema da cidade nova, depositando sobre a arte a confiança de seu papel na vida urbana e na construção da paisagem. Reunidas como um museu de exemplares dos mais importantes do ponto de vista da arte moderna produzida no país, as obras estão inseridas e acessíveis ao observador como um sistema de marcos físicos que promovem a experiência das várias escalas da arquitetura da cidade.
Por um lado, a exigência de Oscar Niemeyer para que artistas fossem parte do empreendimento de construção da nova capital, e para que a arte fosse parte dos grandes conjuntos edificados, reforçou a camada simbólica da cidade, constitutiva do imaginário que nutre as narrativas e as representações da capital do Brasil. Por outro lado, a qualidade escultórica dos pátios, varandas, espelhos d’água, praças dos palácios que projetou, por si só, reforça a relação da arquitetura com alguma forma de arte plástica, de volume ou de superfície, interna ou externamente à edificação. E, nesses casos, a obra de arte se envolve no jogo espacial das escalas da arquitetura de Niemeyer, seja pela disposição – da escultura, do relevo, do painel etc. -, seja pela dimensão, forma da ocupação do espaço –, também para amplificar o caráter arquitetônico de ambas. Assim, algumas das mais importantes obras de arte criadas por artistas que fizeram parte do seleto grupo escolhido por Niemeyer para atuar no projeto da nova capital federal, comparecem como elementos-chaves que reforçam o caráter simbólico da cidade, o modo particular da monumentalidade de Brasília. Na relação que mantêm com a arquitetura moderna, as obras de arte são referências ao observador que percorre seus espaços. Não são somente obras de um museu a céu aberto, mas índices da arquitetura que informam e potencializam a experiência das pessoas sobre os lugares, e que podem ser lidas como pontos de uma rede de símbolos que alimentam o imaginário da vida na cidade.
Com o projeto de Brasília, cria-se não só a condição para se pensar a contínua integração entre arte e cidade, como também para se colocar o conceito em operação. E, contemporaneamente, a ideia do autor persiste nos fatos: quando vemos uma nova geração de habitantes se apropriarem de espaços abertos e fechados, públicos e privados, redefinindo-os como lugares possíveis à forma histórica da cidade, e sem abrir mão dela; ou quando testemunhamos a requalificação de edifícios históricos por meio da simbiose com os eventos artísticos e políticos que não prescindem do caráter da escala gregária; quando a experiência da arte, da arquitetura e do urbanismo é surpreendentemente sintetizada nas imagens das produções cinematográficas e nos pequenos bibelôs que atravessam as fronteiras do país; quando, dentro das utopias, surgem as heterotopias, em face das formas e nos espaços históricos da cidade planejada, suas manifestações sociais, sensíveis aos materiais e à plasticidade de uma cultura artística/arquitetônica na qual o corpo, existindo em modos próprios do urbano, sob a ambiência dos efeitos da natureza circundante – a luminosidade, a abóbada celeste, a vegetação do cerrado, a topografia – habita o artifício. A forma da cidade moderna resiste sob o signo da arte.
Conteúdo criado para a Série
Index: Arte, Cidade e Identidade
No “eixo simbólico” do Plano Piloto de Brasília, obras como essa são diariamente visitadas por turistas de diversas localidades do Brasil e do mundo e, por isso, funcionam como marcos dos edifícios. Contudo, mesmo tendo sido concebidas, construídas e instaladas depois da arquitetura, não podem ser consideradas obras a posteriori, pois são manifestações do mesmo espírito do tempo, sendo o espaço moderno que compartilham decorrência de uma conjuntura sobre o entendimento da finalidade estética da arte, da arquitetura e da cidade. Assim como na arquitetura moderna de Brasília, o aspecto ao qual essas obras menos alude é o autoral, pelo caráter da arte abstrata que chama a atenção do observador para a qualidade formal da técnica, dos materiais, da plasticidade – volume, vazio, escala, posição, distribuição da massa, textura e assim por diante. Por isso, de modo distinto da obra de arte naturalista, a obra de arte abstrata nos convida a captar o que não está figurado, nem delimitado, mas implícito, incompleto e ausente.
Além disso, a obra de arte moderna abstrata também constrói seu próprio espaço. Os Candangos, escultura de bronze de Bruno Giorgi, é exemplar dessa chave da escultura moderna. Um dos principais pontos turísticos de Brasília, tornou-se ícone da Praça dos Três Poderes, referência formal e simbólica do conjunto urbano. A escolha por posicionar a escultura no meio da praça, não ladeada a essa, fora antecipadamente riscada em croquis do próprio Oscar Niemeyer. A plasticidade da escultura agencia um modo específico de ocupação do espaço imediatamente ao seu redor. O efeito, assim como na escultura do meteoro, é de dissimular a percepção do peso do objeto, pois a forma alongada e afinada de seu perfil contrasta com a carga do gigante conjunto de bronze de nove metros de altura. Os pés das figuras, girados para fora em uma abertura coreográfica, tocam sutilmente a base de bronze, formando uma linha de pontos de apoio que acentua o aspecto quase bidimensional dessa obra.
De proporções tão esbeltas, as figuras dos candangos aparentam certa instabilidade, como se fossem tombar com o vento, e como é próprio da obra de arte abstrata, sua eloquência se constitui pelo que ela evoca no amplo entorno que sua dimensão e escala exigem para se contemplar as ausências que a qualificam como obra de arte. Não faltam à obra Candangos a parede de fundo, o nicho que serve de anteparo e/ou referência de escala à escultura, o pedestal, uma zona cromática pavimentada que indique sua ocupação, ou uma fachada/muro próximo, porque sua função bem esbelta e quase bidimensional, no local em que foi instalada e no modo como foi instalada, assemelha-se à função do estandarte, se imaginarmos que a homenagem da forma aos construtores de Brasília não tem frente nem verso. Suas possíveis representações estão latentes in loco para serem levadas adiante, desde a posição central em que está, entre os dois palácios, como símbolo romântico da força do trabalho de indivíduos que erguem uma cidade.
Se a esbelteza e a presença de vãos na massa fundida em bronze conferem aos Candangos certo efeito de transparência, é o aspecto de volume e de uniformidade que atribuem à obra do escultor italiano Alfredo Ceschiatti a qualidade de opacidade conveniente à paisagem que antecipa ou circunda os espaços onde estão instaladas suas esculturas – os Palácios dos Três Poderes da República, a Catedral. A Justiça e conjunto intitulado Os Evangelistas são nítidos exemplos disso.
A primeira, monólito esculpido em granito de rocha de Petrópolis, disposta à frente e à direita do palácio do Supremo Tribunal Federal, está voltada para o Palácio do Planalto, sede do governo executivo federal do Brasil. O objeto alude a uma grande figura de mulher, coroada com uma cabeça desproporcionalmente pequena, de silhueta bem delineada e volumetria uniformes, simétrica, vendada, com as mãos empunhando uma espada. Diferentemente de uma escultura naturalista, a figura é visivelmente derivada das formas euclidianas, sem dobras nem vãos senão aqueles entre os braços e o quadril, pouco se modificando seu aspecto sob as variações da luz natural. Ao circundar a escultura, capta-se o espírito de geometria, de onde se poderia imaginar que o escultor antecipava, ao trabalho sobre a pedra, diagramas de transformação do monólito em sólidos, depois, desenhos de contornos em alta resolução, proporções balanceadas dentro de um eixo vertical invisível que mantém firme e ereta a postura da Justiça. Sem portar balança, a escultura é a imagem do equilíbrio. A sutileza do monumento está no contorno arqueado do tronco da figura, que parece projetar a curvatura das colunas do palácio da Suprema Corte – o STF –, mas também na posição do pesado bloco opaco propositalmente deslocado à direita de quem se aproxima do edifício, marcando o início do percurso da escadaria que convida ao acesso frontal.
Enquanto no Palácio do STF a posição da Justiça é um referencial de marcação da periferia da arquitetura da edificação, no caso da Catedral de Brasília, Alfredo Ceschiatti empregou a escultura ainda mais arquitetonicamente, compondo com quatro grandes estátuas o eixo direcional do acesso à nave subterrânea da igreja, articulando o conjunto dos profetas a uma porção de paisagem bem mais ampliada do que as imediações da edificação.
Esculpido com a colaboração de Dante Croce, o conjunto intitulado Os Evangelistas é composto de quatro figuras que representam os profetas Lucas, Marcos e Mateus, do lado esquerdo; João, do lado direito. Dispostas em ala frontal à Catedral de Brasília, conformando um perímetro que se articula à rampa de acesso ao subterrâneo, as quatro estátuas de três metros de altura cada direcionam e delimitam a zona de uma escala intermediária sobre a grande praça da igreja projetada por Niemeyer. O artista esculpiu no bronze homens que portam nas mãos as primeiras escrituras sagradas do cristianismo, e em vez de posicioná-los de frente para a rua, os dispôs em modo alternado, não em face da igreja – que está ao sul –, mas, ora voltados ao centro cívico-administrativo – ministérios e Congresso Nacional, a leste –, ora voltados ao centro de diversões, a oeste. O espaço buscado pelo artista moderno vai além do entorno imediato do plano da fachada, da praça, da escadaria. É um espaço dinâmico, de projeção da relação de sua obra com a paisagem urbana, de expansão da experiência arquitetônica da cidade e das suas possíveis imagens.
A conquista da aguda intimidade da obra de arte com seu suporte arquitetônico não raro é também a intimidade do artista com o arquiteto, ao ponto de, propositadamente, confundirem-se obras/autores, para o bem comum de se erguer uma cidade nova. Dos mais atuantes expoentes da arte moderna brasileira em Brasília, professor, criador de uma linguagem nova das grandes superfícies que viria atualizar materiais e cores da tradição, Athos Bulcão participou do grupo de profissionais da primeira e da segunda geração que construiu a nova capital. Suas obras realizam a ideia da síntese das artes tão propagada pelos representantes do movimento moderno internacional e nacional, e seu legado para as gerações que o seguiram comprova o potencial imagético de suas criações.
Athos Bulcão sempre declarou que, dentre suas obras, uma delas havia alcançado um resultado muito além do esperado para um curtíssimo tempo de criação. Trata-se do projeto para as fachadas do Teatro Nacional de Brasília, solicitado por Oscar Niemeyer e, definitivamente, obra paradigmática da reflexão sobre o tema da integração das artes e da arquitetura. O edifício trapezoidal é alongado nas direções leste e oeste, às quais correspondem as fachadas envidraçadas entre as colunas inclinadas, construídas em concreto aparente; ao norte e ao sul, duas paredes gigantescas são o suporte de centenas de cubos brancos de tamanhos diferentes, criando um efeito de luz e sombra magnífico. A volumetria do teatro, uma pirâmide de cume abatido, nasce da cota inferior da praça do setor de diversões norte, e é uma bela solução de implantação quando se observam os diferentes acessos aos vários níveis de piso do teatro.
Ao artista, o arquiteto solicitou que o efeito de massa da volumetria parecesse leve, ao que Athos Bulcão respondeu, em apenas dez dias, com seu maior trabalho sobre grandes superfícies, o jogo de luz x sombra x figura, derivado de suas experiências como professor da disciplina Volume e Luz, ministrada na Universidade de Brasília. Guardadas as devidas proporções e diferenças, para o Teatro Nacional de Brasília, Athos criou efeito parecido com o das máscaras da Commedia dell’arte, caracterizadas por suas arestas multifacetadas que multiplicam o efeito de dinamismo das sombras e as variações de formas necessárias à dramaticidade teatral. Por causa da obra de arte sob luz e sombra, o artifício arquitetônico completa seu papel de projetar em grande escala a amplitude do teatro como peça fundamental da cidade e realiza outro modo de efetiva integração da arte e da arquitetura, diferente da relação da escultura justaposta à edificação e à praça, e que envolve a existência de um espaço de investigação compartilhado instituído com o projeto arquitetônico.
Cidade nova, síntese das artes
Esses são alguns dos exemplos do espírito colaborativo de artistas e arquitetos envolvidos na ideia de realizar suas criações como partes do sistema da cidade nova, depositando sobre a arte a confiança de seu papel na vida urbana e na construção da paisagem. Reunidas como um museu de exemplares dos mais importantes do ponto de vista da arte moderna produzida no país, as obras estão inseridas e acessíveis ao observador como um sistema de marcos físicos que promovem a experiência das várias escalas da arquitetura da cidade.
Por um lado, a exigência de Oscar Niemeyer para que artistas fossem parte do empreendimento de construção da nova capital, e para que a arte fosse parte dos grandes conjuntos edificados, reforçou a camada simbólica da cidade, constitutiva do imaginário que nutre as narrativas e as representações da capital do Brasil. Por outro lado, a qualidade escultórica dos pátios, varandas, espelhos d’água, praças dos palácios que projetou, por si só, reforça a relação da arquitetura com alguma forma de arte plástica, de volume ou de superfície, interna ou externamente à edificação. E, nesses casos, a obra de arte se envolve no jogo espacial das escalas da arquitetura de Niemeyer, seja pela disposição – da escultura, do relevo, do painel etc. -, seja pela dimensão, forma da ocupação do espaço –, também para amplificar o caráter arquitetônico de ambas. Assim, algumas das mais importantes obras de arte criadas por artistas que fizeram parte do seleto grupo escolhido por Niemeyer para atuar no projeto da nova capital federal, comparecem como elementos-chaves que reforçam o caráter simbólico da cidade, o modo particular da monumentalidade de Brasília. Na relação que mantêm com a arquitetura moderna, as obras de arte são referências ao observador que percorre seus espaços. Não são somente obras de um museu a céu aberto, mas índices da arquitetura que informam e potencializam a experiência das pessoas sobre os lugares, e que podem ser lidas como pontos de uma rede de símbolos que alimentam o imaginário da vida na cidade.
Com o projeto de Brasília, cria-se não só a condição para se pensar a contínua integração entre arte e cidade, como também para se colocar o conceito em operação. E, contemporaneamente, a ideia do autor persiste nos fatos: quando vemos uma nova geração de habitantes se apropriarem de espaços abertos e fechados, públicos e privados, redefinindo-os como lugares possíveis à forma histórica da cidade, e sem abrir mão dela; ou quando testemunhamos a requalificação de edifícios históricos por meio da simbiose com os eventos artísticos e políticos que não prescindem do caráter da escala gregária; quando a experiência da arte, da arquitetura e do urbanismo é surpreendentemente sintetizada nas imagens das produções cinematográficas e nos pequenos bibelôs que atravessam as fronteiras do país; quando, dentro das utopias, surgem as heterotopias, em face das formas e nos espaços históricos da cidade planejada, suas manifestações sociais, sensíveis aos materiais e à plasticidade de uma cultura artística/arquitetônica na qual o corpo, existindo em modos próprios do urbano, sob a ambiência dos efeitos da natureza circundante – a luminosidade, a abóbada celeste, a vegetação do cerrado, a topografia – habita o artifício. A forma da cidade moderna resiste sob o signo da arte.
Conteúdo criado para a Série
Index: Arte, Cidade e Identidade
No “eixo simbólico” do Plano Piloto de Brasília, obras como essa são diariamente visitadas por turistas de diversas localidades do Brasil e do mundo e, por isso, funcionam como marcos dos edifícios. Contudo, mesmo tendo sido concebidas, construídas e instaladas depois da arquitetura, não podem ser consideradas obras a posteriori, pois são manifestações do mesmo espírito do tempo, sendo o espaço moderno que compartilham decorrência de uma conjuntura sobre o entendimento da finalidade estética da arte, da arquitetura e da cidade. Assim como na arquitetura moderna de Brasília, o aspecto ao qual essas obras menos alude é o autoral, pelo caráter da arte abstrata que chama a atenção do observador para a qualidade formal da técnica, dos materiais, da plasticidade – volume, vazio, escala, posição, distribuição da massa, textura e assim por diante. Por isso, de modo distinto da obra de arte naturalista, a obra de arte abstrata nos convida a captar o que não está figurado, nem delimitado, mas implícito, incompleto e ausente.
Além disso, a obra de arte moderna abstrata também constrói seu próprio espaço. Os Candangos, escultura de bronze de Bruno Giorgi, é exemplar dessa chave da escultura moderna. Um dos principais pontos turísticos de Brasília, tornou-se ícone da Praça dos Três Poderes, referência formal e simbólica do conjunto urbano. A escolha por posicionar a escultura no meio da praça, não ladeada a essa, fora antecipadamente riscada em croquis do próprio Oscar Niemeyer. A plasticidade da escultura agencia um modo específico de ocupação do espaço imediatamente ao seu redor. O efeito, assim como na escultura do meteoro, é de dissimular a percepção do peso do objeto, pois a forma alongada e afinada de seu perfil contrasta com a carga do gigante conjunto de bronze de nove metros de altura. Os pés das figuras, girados para fora em uma abertura coreográfica, tocam sutilmente a base de bronze, formando uma linha de pontos de apoio que acentua o aspecto quase bidimensional dessa obra.
De proporções tão esbeltas, as figuras dos candangos aparentam certa instabilidade, como se fossem tombar com o vento, e como é próprio da obra de arte abstrata, sua eloquência se constitui pelo que ela evoca no amplo entorno que sua dimensão e escala exigem para se contemplar as ausências que a qualificam como obra de arte. Não faltam à obra Candangos a parede de fundo, o nicho que serve de anteparo e/ou referência de escala à escultura, o pedestal, uma zona cromática pavimentada que indique sua ocupação, ou uma fachada/muro próximo, porque sua função bem esbelta e quase bidimensional, no local em que foi instalada e no modo como foi instalada, assemelha-se à função do estandarte, se imaginarmos que a homenagem da forma aos construtores de Brasília não tem frente nem verso. Suas possíveis representações estão latentes in loco para serem levadas adiante, desde a posição central em que está, entre os dois palácios, como símbolo romântico da força do trabalho de indivíduos que erguem uma cidade.
Se a esbelteza e a presença de vãos na massa fundida em bronze conferem aos Candangos certo efeito de transparência, é o aspecto de volume e de uniformidade que atribuem à obra do escultor italiano Alfredo Ceschiatti a qualidade de opacidade conveniente à paisagem que antecipa ou circunda os espaços onde estão instaladas suas esculturas – os Palácios dos Três Poderes da República, a Catedral. A Justiça e conjunto intitulado Os Evangelistas são nítidos exemplos disso.
A primeira, monólito esculpido em granito de rocha de Petrópolis, disposta à frente e à direita do palácio do Supremo Tribunal Federal, está voltada para o Palácio do Planalto, sede do governo executivo federal do Brasil. O objeto alude a uma grande figura de mulher, coroada com uma cabeça desproporcionalmente pequena, de silhueta bem delineada e volumetria uniformes, simétrica, vendada, com as mãos empunhando uma espada. Diferentemente de uma escultura naturalista, a figura é visivelmente derivada das formas euclidianas, sem dobras nem vãos senão aqueles entre os braços e o quadril, pouco se modificando seu aspecto sob as variações da luz natural. Ao circundar a escultura, capta-se o espírito de geometria, de onde se poderia imaginar que o escultor antecipava, ao trabalho sobre a pedra, diagramas de transformação do monólito em sólidos, depois, desenhos de contornos em alta resolução, proporções balanceadas dentro de um eixo vertical invisível que mantém firme e ereta a postura da Justiça. Sem portar balança, a escultura é a imagem do equilíbrio. A sutileza do monumento está no contorno arqueado do tronco da figura, que parece projetar a curvatura das colunas do palácio da Suprema Corte – o STF –, mas também na posição do pesado bloco opaco propositalmente deslocado à direita de quem se aproxima do edifício, marcando o início do percurso da escadaria que convida ao acesso frontal.
Enquanto no Palácio do STF a posição da Justiça é um referencial de marcação da periferia da arquitetura da edificação, no caso da Catedral de Brasília, Alfredo Ceschiatti empregou a escultura ainda mais arquitetonicamente, compondo com quatro grandes estátuas o eixo direcional do acesso à nave subterrânea da igreja, articulando o conjunto dos profetas a uma porção de paisagem bem mais ampliada do que as imediações da edificação.
Esculpido com a colaboração de Dante Croce, o conjunto intitulado Os Evangelistas é composto de quatro figuras que representam os profetas Lucas, Marcos e Mateus, do lado esquerdo; João, do lado direito. Dispostas em ala frontal à Catedral de Brasília, conformando um perímetro que se articula à rampa de acesso ao subterrâneo, as quatro estátuas de três metros de altura cada direcionam e delimitam a zona de uma escala intermediária sobre a grande praça da igreja projetada por Niemeyer. O artista esculpiu no bronze homens que portam nas mãos as primeiras escrituras sagradas do cristianismo, e em vez de posicioná-los de frente para a rua, os dispôs em modo alternado, não em face da igreja – que está ao sul –, mas, ora voltados ao centro cívico-administrativo – ministérios e Congresso Nacional, a leste –, ora voltados ao centro de diversões, a oeste. O espaço buscado pelo artista moderno vai além do entorno imediato do plano da fachada, da praça, da escadaria. É um espaço dinâmico, de projeção da relação de sua obra com a paisagem urbana, de expansão da experiência arquitetônica da cidade e das suas possíveis imagens.
A conquista da aguda intimidade da obra de arte com seu suporte arquitetônico não raro é também a intimidade do artista com o arquiteto, ao ponto de, propositadamente, confundirem-se obras/autores, para o bem comum de se erguer uma cidade nova. Dos mais atuantes expoentes da arte moderna brasileira em Brasília, professor, criador de uma linguagem nova das grandes superfícies que viria atualizar materiais e cores da tradição, Athos Bulcão participou do grupo de profissionais da primeira e da segunda geração que construiu a nova capital. Suas obras realizam a ideia da síntese das artes tão propagada pelos representantes do movimento moderno internacional e nacional, e seu legado para as gerações que o seguiram comprova o potencial imagético de suas criações.
Athos Bulcão sempre declarou que, dentre suas obras, uma delas havia alcançado um resultado muito além do esperado para um curtíssimo tempo de criação. Trata-se do projeto para as fachadas do Teatro Nacional de Brasília, solicitado por Oscar Niemeyer e, definitivamente, obra paradigmática da reflexão sobre o tema da integração das artes e da arquitetura. O edifício trapezoidal é alongado nas direções leste e oeste, às quais correspondem as fachadas envidraçadas entre as colunas inclinadas, construídas em concreto aparente; ao norte e ao sul, duas paredes gigantescas são o suporte de centenas de cubos brancos de tamanhos diferentes, criando um efeito de luz e sombra magnífico. A volumetria do teatro, uma pirâmide de cume abatido, nasce da cota inferior da praça do setor de diversões norte, e é uma bela solução de implantação quando se observam os diferentes acessos aos vários níveis de piso do teatro.
Ao artista, o arquiteto solicitou que o efeito de massa da volumetria parecesse leve, ao que Athos Bulcão respondeu, em apenas dez dias, com seu maior trabalho sobre grandes superfícies, o jogo de luz x sombra x figura, derivado de suas experiências como professor da disciplina Volume e Luz, ministrada na Universidade de Brasília. Guardadas as devidas proporções e diferenças, para o Teatro Nacional de Brasília, Athos criou efeito parecido com o das máscaras da Commedia dell’arte, caracterizadas por suas arestas multifacetadas que multiplicam o efeito de dinamismo das sombras e as variações de formas necessárias à dramaticidade teatral. Por causa da obra de arte sob luz e sombra, o artifício arquitetônico completa seu papel de projetar em grande escala a amplitude do teatro como peça fundamental da cidade e realiza outro modo de efetiva integração da arte e da arquitetura, diferente da relação da escultura justaposta à edificação e à praça, e que envolve a existência de um espaço de investigação compartilhado instituído com o projeto arquitetônico.
Cidade nova, síntese das artes
Esses são alguns dos exemplos do espírito colaborativo de artistas e arquitetos envolvidos na ideia de realizar suas criações como partes do sistema da cidade nova, depositando sobre a arte a confiança de seu papel na vida urbana e na construção da paisagem. Reunidas como um museu de exemplares dos mais importantes do ponto de vista da arte moderna produzida no país, as obras estão inseridas e acessíveis ao observador como um sistema de marcos físicos que promovem a experiência das várias escalas da arquitetura da cidade.
Por um lado, a exigência de Oscar Niemeyer para que artistas fossem parte do empreendimento de construção da nova capital, e para que a arte fosse parte dos grandes conjuntos edificados, reforçou a camada simbólica da cidade, constitutiva do imaginário que nutre as narrativas e as representações da capital do Brasil. Por outro lado, a qualidade escultórica dos pátios, varandas, espelhos d’água, praças dos palácios que projetou, por si só, reforça a relação da arquitetura com alguma forma de arte plástica, de volume ou de superfície, interna ou externamente à edificação. E, nesses casos, a obra de arte se envolve no jogo espacial das escalas da arquitetura de Niemeyer, seja pela disposição – da escultura, do relevo, do painel etc. -, seja pela dimensão, forma da ocupação do espaço –, também para amplificar o caráter arquitetônico de ambas. Assim, algumas das mais importantes obras de arte criadas por artistas que fizeram parte do seleto grupo escolhido por Niemeyer para atuar no projeto da nova capital federal, comparecem como elementos-chaves que reforçam o caráter simbólico da cidade, o modo particular da monumentalidade de Brasília. Na relação que mantêm com a arquitetura moderna, as obras de arte são referências ao observador que percorre seus espaços. Não são somente obras de um museu a céu aberto, mas índices da arquitetura que informam e potencializam a experiência das pessoas sobre os lugares, e que podem ser lidas como pontos de uma rede de símbolos que alimentam o imaginário da vida na cidade.
Com o projeto de Brasília, cria-se não só a condição para se pensar a contínua integração entre arte e cidade, como também para se colocar o conceito em operação. E, contemporaneamente, a ideia do autor persiste nos fatos: quando vemos uma nova geração de habitantes se apropriarem de espaços abertos e fechados, públicos e privados, redefinindo-os como lugares possíveis à forma histórica da cidade, e sem abrir mão dela; ou quando testemunhamos a requalificação de edifícios históricos por meio da simbiose com os eventos artísticos e políticos que não prescindem do caráter da escala gregária; quando a experiência da arte, da arquitetura e do urbanismo é surpreendentemente sintetizada nas imagens das produções cinematográficas e nos pequenos bibelôs que atravessam as fronteiras do país; quando, dentro das utopias, surgem as heterotopias, em face das formas e nos espaços históricos da cidade planejada, suas manifestações sociais, sensíveis aos materiais e à plasticidade de uma cultura artística/arquitetônica na qual o corpo, existindo em modos próprios do urbano, sob a ambiência dos efeitos da natureza circundante – a luminosidade, a abóbada celeste, a vegetação do cerrado, a topografia – habita o artifício. A forma da cidade moderna resiste sob o signo da arte.
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Index: Arte, Cidade e Identidade